PÊNFIGO FOLIÁCEO DIAGNOSTICADO EM CÃO POR OTOENDOSCOPIA: RELATO DE CASO

Foto: alberto clemares expósito/iStock

Por: Julia Franca

RESUMO
As dermatoses imunomediadas são consideradas doenças raras em pele de cães e gatos, correspondendo de 1 a 1,5% dos pacientes examinados. Em geral, as formas de pênfigo possuem diferenças clínicas variadas, podendo ainda ser divididas entre autoimune (primária) ou imunomediada (secundária). O complexo pênfigo é dividido em pênfigo vulvar, vegetante, paraneoplásico e foliáceo, sendo o último, apesar de raro, mais frequente na clínica médica de pequenos animais. O pênfigo foliáceo caracteriza-se por uma dermatite pustular, podendo evoluir para crostas, alopecia, erosões cutâneas e, geralmente, inicia-se em face e orelhas. A clínica mucocutânea é rara. O patomecanismo ocorre a partir da perda da coesão celular levando a acantólise com formação de bolha dentro da epiderme, ocasionada por autoanticorpo contra antígenos da membrana da célula epidérmica ou estruturas próximas a ela, ocasionando a separação das células (acantólise).
A biópsia de pele pode ser diagnóstica ou fortemente indicativa. O tratamento do pênfigo necessita de altas doses de glicocorticoides com ou sem drogas imunomoduladoras e o prognóstico varia com a forma e gravidade da doença. Com o intuito de auxiliar o diagnóstico do pênfigo foliáceo, objetivou-se em relatar um caso de um canino da raça American Bully, macho, 5 anos, com úlceras dentro do conduto auditivo, tratado há mais de 3 anos, onde sempre retornava ao fim das medicações prescritas. Entre os sinais clínicos estava a otite recorrente com sangramento crônico.
 
RELATO DE CASO
O pênfigo foliáceo constitui uma doença autoimune sendo a mais comum do Complexo Pênfigo em cães. A doença se caracteriza pela presença de anticorpos nas proteínas de adesão que formam a epiderme levando a falha e evoluindo para erosões cutâneas, vesículas e pústulas (SCOTT, et al., 2001). Segundo Balda (2008), ocorre com maior frequência em fêmeas na faixa etária entre 4-9 anos.
O diagnóstico se dá pelo histórico, anamnese, citologia e confirmado a partir da biópsia e histopatologia. O tratamento busca suprimir a resposta imunológica do paciente, sendo os glicocorticoides os fármacos de eleição, entretanto, outros fármacos imunossupressores podem ser utilizados, como: azatioprina, ciclosporina, ciclofosfamida, tetraciclina entre outros. A doença não possui cura, sendo necessário acompanhamento contínuo do paciente (SCOTT, et al., 2001).
As otites externas são comuns em cães, sendo menos frequente em gatos. Diversos fatores podem desencadear a inflamação do conduto auditivo, sendo importante a identificação do fator desencadeante da doença para o tratamento adequado. Apesar das alergias e hiperensibilidades serem relatadas como as maiores causadoras da doença, outros fatores como sarnas, doenças endócrinas e autoimunes são descritas na literatura (SKOVA, et al., 2007).
Foi atendido na clínica Animalia Pet Care, no dia 25/05/2023, animal da espécie canina, macho, raça American Bully, 5 anos apresentando queixa de otites recorrentes com sangramento e secreção purulenta que melhoravam ao uso da medicação estipulada pelo médico veterinário, porém, os sintomas retornavam ao fim do tratamento. O conduto esquerdo apresentava-se no momento da consulta edemaciado, hiperêmico, com presença de secreção purulenta. Com objetivo de entender a causada otite, foi feita citologia do conduto auditivo com swab estéril sem meio. Na citologia foi observado presença de estruturas compatíveis com bastonetes. Ao exame físico animal apresentava-se normohidratado, normocorado, temperatura corpórea 38,8 ºC, ausculta cardio-pulmonar dentro da normalidade. O canino possuía histórico de lesões cutâneas que estavam estáveis no momento da consulta. Foi prescrito 1mg/kg de prednisolona por 5 dias, higiene do conduto e encaminhado para otoendoscopia.
No dia 05/06/2023 animal realizou a otoendoscopia com anestesia geral. No exame foi possível observar ulcerações no interior do conduto auditivo esquerdo assim como debris celulares (Figura 1). Por meio de uma pinça endoscópica foi feito a biópsia e enviado para histopatologia com intuito de elucidar o caso clínico (Figura 2).
Acervo Pessoal/Figura 1 – úlcera em conduto auditivo esquerdo/Figura 2 (direita) Biópsia de úlcera com pinça endoscópica

Após o procedimento, foi prescrito mais 5 dias de prednisolona na dose de 0,7mg/kg e depois 5 dias na dose de 0,3mg/kg. Também foi tratado com medicação tópica contendo ciprofloxacino 0,35%, mometasona 0,1% na base de Tris EDTA duas vezes ao dia por 15 dias.
No retorno do paciente no dia 28/06, ainda havia secreção sanguinolenta no conduto auditivo. O resultado da histopatologia concluiu como pênfigo foliáceo, dando início ao tratamento da doença autoimune do paciente (Figura 3). O pênfigo foliáceo caracteriza-se histopatologicamente por acantólise intragranular ou subcórnea com fenda, resultante em formação de vesícula ou erosão. No laudo histopatológico foi observado ulceração do tecido epitelial, permeada de processo inflamatório crônico, focos necróticos, hemorrágicos e células acantolíticas com fragmentação epitelial (SCOTT, D.W. et al, 2001). Não foi observado indício de agentes infecciosos na amostra. O padrão histopatológico encontrado foi sugestivo de lesão imunomediada, sendo a principal hipótese o pênfigo foliáceo (Figura 3).
Figura 3 – Laudo da Biópsia pelo laboratório VETPAT

O tratamento de escolha do pênfigo depende das apresentações clínicas e gravidade da doença. Casos localizados e moderados podem ser tratados com esteroides tópicos, enquanto na doença extensa é usado glicocorticoides sistêmicos e imunossupressores (SCOTT, D.W. et al, 2001). Apenas 20-40% dos pacientes respondem ao tratamento usando isoladamente glicocorticoide (MUELLER, etal. 2006). As drogas imunossupressoras não-esteróides que podem ser eficazes incluem azatioprina, clorambucila, ciclofosfamida e ciclosporina (ROSENKRANTZ, 2004). A partir do diagnóstico e como não houve resposta ao primeiro tratamento, foi estipulado o tratamento com ciclosporina na dose de 5mg/kg uma vez ao dia, terapia com prednisolona com 1mg/kg duas vezes ao dia por 7 dias, depois 1 mg/kg uma vez ao dia por mais 7 dias e por fim, 0,5 mg/kg por mais 7 dias. Como terapia tópica, foi prescrito mometasona 0,1% e ciprofloxacino a 0,35% em base de Tris EDTA durante 30 dias. A mometasona foi escolhida por ser um potente corticoide tópico usado para tratar prurido e inflamação crônico, incluindo otites crônicas (GRIFFIN, et al., 2008e BLAKE, et al., 2017).
No retorno do paciente, no dia 12/07, não havia mais erosão visível pela otoscopia e nem sangramento. Na citologia, não foi observado indício de agentes infecciosos. Com a boa resposta terapêutica, iniciou-se o desmame gradual da ciclosporina, mantendo uma vez ao dia por 14 dias e depois passando para cada 48h por mais 30 dias. Como terapia tópica, apenas a mometasona 0,1% foi prescrita em dias alternados. Ao fim de 30 dias e o paciente sem apresentar retorno das erosões, a dose da ciclosporina foi passada para 2x na semana, assim como tratamento tópico. Após mais um mês de tratamento e a estabilidade do quadro de otite recorrente, foi suspensa a ciclosporina, mantendo a mometasona tópica uma vez na semana como terapia pró-ativa tendo como intuito evitar recidiva das lesões.
O paciente encontra-se atualmente (21/02/2024) estável, após 8 meses do diagnóstico, apenas com a pulsoterapia com mometasona e sem apresentar novos quadros de otite ou ulcerações.
O relato tem como principal objetivo mostrar a importância investigativa de otites recorrentes, assim como a otoendoscopia como um eficaz auxiliar no diagnóstico precoce de doenças autoimunes como o Complexo Pênfigo. Sabendo-se que essas afecções têm caráter incurável, o paciente deverá ser avaliado continuamente, seguindo o tratamento de manutenção evitando retorno da doença ativa (SCOTT, et al., 2001).
 
DISCUSSÃO
Neste relato de caso podemos perceber a importância da investigação e exame histopatológico de lesões não responsivas aos métodos convencionais de tratamento. Além disso, o pênfigo foliáceo quando diagnosticado precocemente, pode apresentar boa resposta terapêutica e controle da doença, evitando evolução para casos mais graves.
A otite externa está amplamente presente na clínica de pequenos, sendo que, segundo Scott (2001), a maioria dos casos crônicos possui uma causa primária e diversas delas perpetuantes. O mesmo descreve o pênfigo foliáceo como possível causa primária de otite recorrente, destacando a importância de identificar e corrigir esses fatores que podem levar a falhas no tratamento.
A otoendoscopia atualmente é um dos métodos para investigar causas primárias em otites crônicas, como no caso de pólipos, colesteatomas, neoplasias e agora, mostrou-se também eficaz no diagnóstico de doenças autoimunes, como o pênfigo foliáceo. Dessa forma, foi possível chegar ao diagnóstico correto do paciente e instituir o tratamento adequado.
O exame histopatológico realizado a partir da otoendoscopia se mostrou efetivo na conclusão do caso clínico. O uso de imunossupressores associado ao glicocorticoide se mostrou um tratamento eficaz, assim como o uso tópico de corticoide em tratamento pró-ativo, sendo capaz de controlar a doença durante o período de acompanhamento posterior do paciente, encontrando-se estável após 8 meses do diagnóstico.
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BALDA, A. C., Ikeda, M. O., Larsson Junior, C. E., Michalany, N. S. & Larsson C. E. Pênfigo foliáceo canino: estudo retrospectivo de 43 casos e terapia (2000-2005). Pesquisa Veterinária Brasileira, 28(28), 387-392. 2008.

BLAKE, J, Keil D, Kwochka K, Palma K, Schofield J. Evaluation of a single-administration ototopical treatment for canine otitis externa: a randomised trial. Vet Rec Open 4: e000219.2017

GRIFFIN, CE , Reeder CJ, Polissar NL, Neradilek B, Armstrong RD. Comparative adrenocortical suppression in dogs with otitis
externa following topical otic administration of four different glucocorticoid-containing medications. Vet Ther ; 9:111–121, 2008.

LINDA, M., Keith A.Hnilica. Dermatologia de pequenos animais: Atlas colorido. 2003

MUELLER, R.S., Krebs I., Power H.T. & Fieseler K.V. 2006. Pemphigus foliaceus in 91 dogs. J. Am. Vet. Med. Assoc. 42:189-196., 2006

ROSENKRANTZ, W.S. Pemphigus: current therapy. Vet. Dermatol. 15:90-98., 2004

SCOTT, D.W. et al. Muller & Amp; Kirk ́s – Dermatologia dos pequenos animais. 6.ed. Philadelphia: Saunders, 2001.

SKOVA, P.; VYDRZALOVA, M.; Mazurova, J.
Identification and Antimicrobial Susceptibility of Bacteria and Yeasts Isolated from Healthy Dogs and Dogs with Otitis Externa Journal Veterinary Medicine. n.54, p. 559–563, 2007.

Julia Franca
Graduada pela Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro em 2014; Pós-graduada em Dermatologia em Pequenos Animais pelo Equalis – SP 2018; Possui curso de aperfeiçoamento em Dermatopatias alérgicas e Imunoterapia pelo Qualitas RJ em 2021; Atendimento especializado em Dermatologia e otologia nas clínicas IEMEV, ANIMALIA – PET CARE, SERES- Petz, Vet Vida, Cellula Animal. Atua com exames de otoendoscopia em diversas clínicas do Rio de Janeiro.