ENDOCRINOPATIA MAIS PREVALENTE NA ESPÉCIE FELINA, O HIPERTIREOIDISMO MERECE DESTAQUE E ESTUDO DE QUEM SE ESPECIALIZA NA ÁREA DE MEDICINA FELINA
Por Raquel Calixto e Rafaele Pinhão
O hipertireoidismo é a endocrinopatia mais prevalente na espécie felina. O primeiro caso em felinos foi diagnosticado em 1979, sendo comparado ao bócio adenomatoso tóxico, uma das formas de hipertireoidismo em humanos. Desde então o diagnóstico da doença vem crescendo ao longo dos anos, bem como a longevidade dos gatos. É uma patologia extremamente frequente na rotina clínica de felinos e apesar dos esforços da comunidade científica, sua etiologia permanece desconhecida.
Patogenia e sinais clínicos
A enfermidade se instala progressivamente, bem como o aparecimento de seus sintomas. Inicialmente, sintomas discretos podem não chamar a atenção do responsável, pois é por ele interpretado como um satisfatório estado de saúde do animal idoso, afinal são nítidos o aumento do apetite e da atividade e nível de alerta. A medida que a patologia vai avançando, os sinais clínicos se tornam mais severos e gera indagações pelo fato do animal demonstrar muita fome e ainda assim perder cada vez mais peso.
A maior parte das manifestações clínicas do paciente hipertireoideo tem um caráter clássico, referindo-se ao estado hipermetabólico. Hormônios tireoidianos possuem inúmeras funções, incluindo regulação da termogênese e o metabolismo de carboidratos lipídeos e proteínas. O emagrecimento progressivo reflete o aumento da taxa metabólica, que também é responsável pela intolerância ao calor e pode gerar elevação da temperatura. A fraqueza e a letargia presentes em alguns casos, parecem ter relação com a perda de peso e o estado catabólico desses indivíduos. A taxa de filtração glomerular também é aumentada pelo hipermetabolismo, o que ocasiona redução da concentração de soluto na medular renal, menor reabsorção de água, culminando com poliúria. A polidipsia tende a ser compensatória, mas pode ser de origem primária (psicogênica). Muitos gatos hipertireoideos podem ter poliúria e polidipsia por associação de doença renal (SCOTT-MONCRIEFF, 2015).
Manifestações gastrointestinais são frequentes, sendo o vômito mais comum que a diarreia. O vômito pode ocorrer pelo excesso e voracidade na alimentação, promovidos pela polifagia e pelo estímulo que os hormônios tireoidianos promovem na zona de disparo do quimiorreceptor. Além disso, os hormônios tireoidianos promovem aumento da peristalse e do trânsito intestinal, ocasionando múltiplas defecações e diarreia (SCOTT-MONCRIEFF, 2015).
Alterações comportamentais como agitação, inquietude, agressividade, vocalizações e mudanças abruptas de humor também são frequentes (CARNEY et al, 2016; TEIXEIRA, 2016). Essas manifestações clínicas têm inúmeras causas, no entanto algumas têm relação com aumento da atividade da adrenalina, já que regridem quando tratadas com antagonistas adrenérgicos (SCOT-T-MONCRIEFF, 2015).
Alguns pacientes podem apresentar a forma atípica, que é caracterizada por sinais basicamente opostos àqueles vistos na forma clássica. Tal atipia é demonstrada por anorexia, prostração e apatia. Apesar de ocorrer em apenas 5 a 10% dos casos, é necessário ter em mente que tal manifestação existe, no intuito de não negligenciar o hipertireoidismo como possível diagnóstico (TEIXEIRA, 2016).
A exacerbação aguda dos sinais clínicos ligados à tireotoxicose, denominado crise tireotóxica (Thyroid Storm), é uma manifestação rara, provocada pela liberação excessiva de hormônio tireoideano. Tal condição pode surgir em virtude da palpação vigorosa da glândula, após tireoidectomia ou terapia com iodo radioativo, retirada abrupta de drogas anti-tireoidianas, dentre outras causas. Há quatro sinais principais que precisam estar envolvidos para se constatar a crise tireotóxica: febre, alterações em sistema nervoso central (SNC), sinais gastrointestinais ou hepáticos, e sinais cardiovasculares (como taquicardia, fibrilação atrial, insuficiência cardíaca congestiva). Torna-se uma condição de emergência, aumentando a letalidade da doença (SCOTT–MONCRIEFF, 2015; FADEL & COSTA, 2018).
DIAGNÓSTICO
Histórico e exame físico
O exame físico do paciente hipertireoideo pode ser um pequeno desafio, principalmente quando se trata de um animal inquieto, agitado, intolerante à manipulação e, potencialmente agressivo. Durante a inspeção, o gato pode demonstrar perda acentuada de peso e massa muscular, podendo apresentar caquexia e sarcopenia, mal estado da pelagem, além de taquipneia, desidratação e ventroflexão cervical (possivelmente por deficiência de tiamina ou hipocaliemia). É habitual encontrar taquicardia arritimias como ritmo de galope. A elevação da pressão arterial sistólica é um achado frequente no exame físico do felino e ocorre devido a redução da resistência vascular periférica que leva a diminuição na resistência diastólica e o aumento do débito cardíaco (SCOTT-MONCRIEFF, 2015;CARNEY et al, 2016).
Um achado muito comum é aumento da tireoide, tornando-se perceptível à palpação, visto que, sob condições normais, ela naturalmente não é palpável. Este é evidente em mais de 90% dos pacientes com hipertireoidismo, sendo muitas vezes bilateral (BORETTI et al, 2009). Embora, o simples aumento da glândula não é garantia do diagnóstico (CARNEY et al., 2016).
Exames de rotina
As alterações hematológicas em felinos com hipertireoidismo costumam ser discretas e comuns a outras patologias. No hemograma pode ser observado eritrocitose, pelo aumento da eritropoietina, que é estimulada pelo hormônio tireoidiano em conjunto com a maior demanda de oxigênio, em função do estado hipermetabólico. Outro achado pouco específico e extremamente comum nos felinos é o leucograma de estresse (SCOTT-MONCRIEFF, 2015; CARNEY et al.,2016). Na bioquímica, frequentemente existe um aumento de enzimas hepáticas, principalmente alanina aminotransferase (ALT) e fosfatase alcalina. O aumento mais expressivo dessas enzimas está relacionado diretamente ao tempo de doença e aos níveis séricos dos hormônios tireoidianos. A azotemia pode estar presente, no entanto é preciso ter cautela na interpretação do exame. Animais com hipertireoidismo costumam ter perdas pelo vômito e/ou diarreia e pela poliúria, podendo estar desidratados no momento do exame, apesar de desenvolverem polidipsia compensatória. Portanto a azotemia pode ser de origem pré-renal em alguns pacientes. O aumento do metabolismo gera um aumento na taxa de filtração glomerular (TFG) e pode mascar os níveis reais de ureia e creatinina, que tendem a aumentar após o tratamento. Felinos sabidamente nefropatas, devem ter os níveis de ureia e creatinina monitorados mais frequentemente durante o tratamento (SCOTT-MONCRIEFF,2015; CARNEY et al., 2016).
A densidade urinária do animal enfermo é variável e, a proteinúria está comumente presente, podendo ter relação com a hipertensão glomerular e infecções. O exame de urina auxilia a descartar diabetes mellitus, que é um dos diagnósticos diferenciais.
Uma alteração eletrolítica comum é a hipocalemia associada ao aumento do fluxo urinário, anorexia e perdas gastrointestinais. Outras alterações bioquímicas que podem estar presentes são o aumento do fosfato e hiperglicemia de estresse. Deve se ter cautela ao solicitar e interpretar os valores de frutosamina nesses pacientes, já que o hipermetabolismo aumenta o turnover de proteínas, resultando em valores mais baixos que os reais (SCOTT-MONCRIEFF, 2015).
TRATAMENTO
O tratamento objetiva reestabelecer o estado eutireoideu, evitar o hipotireoidismo, bem como os efeitos colaterais da terapia adotada. O tratamento pode ser farmacológico, nutricional, cirúrgico ou através de radioterapia com iodo. A escolha entre as opções terapêuticas estará diretamente associada à disponibilidade e viabilidade, custo, estado clínico do paciente e concordância do tutor. E também será determinada pela presença de comorbidades, como doença renal crônica e cardiopatias. A terapia deve ser muito bem planejada de acordo com o tutor, sendo explicada extensivamente cada vantagem e desvantagem da estratégia escolhida (SCOTT–MONCRIEFF, 2015; CARNEY et al., 2016). O metimazol é o fármaco antitireoideano mais utilizado. Ele inibe a síntese de hormônios tireoideanos e pode ser administrado por via oral ou tópica através do gel transdérmico. A dose inicial varia entre 1,25mg e 2,5mg por gato a cada 12horas. Os efeitos colaterais mais comuns da droga por via oral são vômito, náusea, inapetência e prurido facial. Na forma tópica é possível haver eritema no local de aplicação. Efeitos menos comuns são hepatopatias e discrasias sanguíneas (anemia, leucopenia, trombocitopenia). Estes transtornos afetam mais de 25% dos gatos e costumam ocorre entre quatro e seis semanas após o início do tratamento.
O metimazol não é um tratamento curativo e deverá ser administrado de forma contínua durante toda vida do animal, caso essa seja a escolha como terapia única. A interrupção da medicação levará invariavelmente ao retorno ao estado hipertireoideo. O metimazol fica ainda indicado como terapia inicial para os casos severos de hipertireoidismo, na tentativa de estabilizar o animal e prepara-lo posteriormente para a tireoidectomia ou aplicação de iodo radioativo. A maior desvantagem da terapia medicamentosa, além do uso contínuo, é o crescimento contínuo da glândula (adenoma) e a possibilidade de evoluir de forma maligna (carcinoma) (CARNEY et al., 2016).
A terapia nutricional é baseada no fornecimento de uma ração seca com restrição de iodo. A condição do tratamento está diretamente ligada a exclusão de todo e qualquer alimento além deste. Há poucos trabalhos publicados avaliando a eficácia de tal manejo no paciente hipertireoideo. Entretanto, todos eles revelaram uma redução dos níveis de T4 total e alguns avaliaram a melhora clínica dos gatos (GILMAN, 2019). Assim como o tratamento farmacológico, ele não é curativo. Tal alimento é fabricado apenas por uma indústria e não está disponível no mercado brasileiro.
Tratamentos curativos são possíveis através da tireoidectomia e também da utilização de iodo radioativo. O procedimento cirúrgico é uma intervenção delicada e deve ser levado em consideração o estado geral do paciente, os riscos anestesiológicos e a posterior descompensação da função renal e/ou da função cardíaca ou mesmo da instalação de um estado hipotireoideo, além da possibilidade de danos na paratireoide (CAREY, 2016).
A radioterapia com iodo é atualmente considerada o tratamento de escolha para o hipertireoidismo. Pode ser realizada por via subcutânea ou oral, com mínimos efeitos colaterais, sendo curativo em 95% dos casos. As desvantagens desse tratamento referem-se aos custos e, principalmente, na disponibilidade de hospitais veterinários que ofereçam tal serviço. O gato precisa ficar hospitalizado e monitorado por aproximadamente três dias. O efeito colateral mais preocupante é o hipotireoidismo irreversível. Pesquisas revelam uma grande variação na prevalência do hipotireoidismo iatrogênico, sendo menor que 20%, outros ensaios concluíram 40%, chegando até 79% em outro estudo (CAREY, 2016;FERNANDEZ et al., 2019).
PROGNÓSTICO
O prognóstico da patologia está diretamente ligado ao tempo de evolução da doença, às comorbidades e também ao tratamento adotado. Animais que evoluem com sinais de cardiotoxicidade, aqueles que apresentam doença renal crônico, em geral podem ter uma expectativa de vida menor. Obviamente, a morbidade e mortalidade aumentam para os gatos que não recebem tratamento e, também nos casos relacionados à progressão maligna como os carcinomas de tireoide (CAREY, 2016).
Raquel Calixto
Mestre em Ciências Veterinárias pela UFRRJ. Atendimento exclusivo a felinos domésticos. Autora de capítulos de livros na área de Medicina Felina. Professora no curso de pós-graduação EQUALIS e do curso de atualização CDMV. Autora do livro Emergências em Medicina Felina, Medvep Editora (2018). Responsável pelo setor de Medicina Felina das Clínicas Veterinárias Animália – PetCare e DOK – RJ
Rafaele Pinhão
Pós-graduação em endocrinologia e metabologia veterinária – Anclivepa SP. Mestrado em ciências faculdade de medicina – UFRJ. Professora dos cursos de atualização CDMV e pós-graduação Qualittas e Anclivepa