Por Rosemar de Almeida Freitas
Desordem do Eixo Cardiovascular Renal: A importância da atuação do nefrologista nos estágios iniciais da doença cardíaca de cães e gatos?
Sabe-se que há uma interação de forma natural e complexa, entre coração e rins. Sendo assim, é de se esperar que a disfunção renal seja um achado frequente em cães e gatos com insuficiência cardíaca. Conhecendo a fisiopatologia da doença cardiovascular, que cursa com a redução do débito cardíaco e em alterações hemodinâmicas como resultado da ativação dos sistemas neuro-humorais, fica fácil correlacionar os mecanismos envolvidos na redução da taxa de filtração glomerular e consequentemente na perda da função renal.
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Esse déficit na função renal ocorre como consequência à hipoperfusão oriunda do baixo débito cardíaco, que em conjunto com à redistribuição sanguínea, principalmente para o cérebro, reduz ainda mais o fluxo de sangue que é direcionado a ele. Em contrapartida, essa disfunção irá refletir negativamente na função cardiovascular acarretando em um déficit ainda maior da capacidade funcional desse coração, o que gera um ciclo vicioso de retroalimentação da doença.
O mecanismo fisiopatológico da disfunção renal na insuficiência cardiovascular é complexo e multifatorial e envolve: i) sistema de natriurese por pressão que regula a quantidade de fluido extracelular, pela excreção de sódio e água pelos rins, em resposta a mudanças na pressão sanguínea; ii) ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) como consequência da redução na taxa de filtração glomerular, devido a perda de função renal. Ademais, tal fato promove uma redução na excreção de renina pelos rins, fator este que pode contribuir para aumentar a atividade deste sistema; iii) a congestão venosa promovida pelo SRAA também é considerada fator determinante na progressão da insuficiência cardíaca e renal por causar o aumento na pressão venosa central (PVC), resultando na hipertensão dos túbulos distais e veias renais, disfunção tubular, proteinúria e hipóxia do parênquima renal; iv) a hipertensão prolongada pode levar a piora da função cardíaca, o que irá refletir diretamente na função renal uma vez que está pode levar ao recrutamento de células do sistema imune (mastócitos e macrófagos), resultando na ativação de fibroblastos e miofibroblastos com consequente deposição de pró-colágeno na matriz extracelular, que é convertido em colágeno, gerando fibrose cardíaca e renal; v) o sistema nervoso simpático (SNS) também é ativado para manter o débito cardíaco que encontra-se reduzido, contribuindo para maior estimulação do SRAA. A ativação prolongada do SNS tem efeito promotor de crescimento na parede dos vasos sanguíneos intrarrenais, aumentando assim, a liberação de renina. Todo esse processo tem como finalidade melhorar o aporte sanguíneo de órgãos vitais em função da vasoconstrição periférica de órgãos não vitais, como os rins, contribuindo para reduzir ainda mais a taxa de filtração glomerular, entre outros fatores envolvidos.
Em adição a isso, a própria terapêutica instituída para a insuficiência cardíaca, pode também contribuir para a deterioração da função renal de várias formas e como exemplo clássico disso, é o uso dos inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA). Este fármaco pode aumentar a concentração sérica de creatinina e outras toxinas urêmicas, uma vez que atua reduzindo o tónus vascular e a pressão na arteríola eferente glomerular com consequente redução da filtração sanguínea. Um aumento de cerca de 30% na creatinina sérica, após iniciar o tratamento é esperado. No entanto, se esse percentual for superior, é necessário um reajuste na dose e se necessário, a suspensão, devido ao alto risco da ocorrência de um declínio abrupto da função renal, secundário a hipotensão.
Outro fármaco usado com frequência nas doenças cardíacas são os diuréticos de alça (furosemida, torasemida), que apesar de aliviarem a congestão causada pela perda da função cardíaca, frequentemente contribuem para a hipoperfusão tecidual renal, já que seu uso pode acarretar em perda excessiva de volume, distúrbios eletrolíticos e ácido-base, além de estimular a ativação neuro-humoral.
Na medicina humana, esta complexa interação entre ambos os órgãos, em diversas condições patológicas agudas ou crônicas já é bem estabelecida e estudada, recebendo o nome de síndrome cardiorrenal (SCR). Já na medicina veterinária, esta mesma síndrome recebe uma outra nomenclatura, sendo descrita como Desordens do Eixo Cardiovascular e Renal (Cardiovascular–renal axis disorders) e ainda, uma classificação (Fluxograma 1) e uma subclassificação em estável e instável, de acordo com a apresentação clínica do paciente, objetivando o melhor entendimento dessa interação fisiopatológica.
Ainda que a reserva funcional dos rins e seus mecanismos compensatórios possam prevenir as falhas funcionais por um período de tempo variável, quando já esgotadas as possibilidades de adaptação, iniciará o déficit funcional, caracterizado principalmente por incapacidade de concentração urinária. Outro ponto importante a ser levado em consideração, é a morfologia renal (avaliada pelo exame ultrassonográfico da cavidade abdominal) no momento do diagnóstico da doença cardíaca uma vez que, as alterações morfoestruturais são com frequência observadas em quase que a totalidade dos cães e gatos com doença cardíaca (nos diferentes estágios), tais como a perda de relação corticomedular, ecogenicidade aumentada, assimetria renal, redução do fluxo arterial intra-renal calculado pelo índice de resistividade e o índice de pulsatilidade entre outras. Há tudo isso, soma-se ainda as alterações inerentes a idade avançada, como por exemplo a redução do número de glomérulos, aumento da fibrose e perda de massa renal, principalmente de tecido cortical. No entanto, esta perda estrutural nem sempre espelha o grau de comprometimento funcional dos rins já observado em alguns estudos.
Sabe-se ainda que em relação a lesões renais iniciais, a creatinina não é o marcador de lesão renal confiável já que, está só terá suas concentrações séricas elevadas quando há uma redução significativa na taxa de filtração glomerular (≥75%). Dessa forma, o uso de biomarcadores torna-se uma ferramenta de grande auxílio, pois são substâncias biológicas específicas para determinado órgão ou tecido que são liberadas de modo proporcional à ocorrência de injúrias ou de doenças, permitindo obter informações com valor diagnóstico, prognóstico; e ainda, possibilita acompanhar a resposta do paciente ao tratamento que lhe foi instituído para reparação da lesão. A exemplos de biomarcadores precoces de lesão renal tem-se a cistatina C, a lipocalina associada à Gelatinase Neutrofílica (NGAL), a N-acetil-β-D-glucosaminidase (NAG), a enzima Gama-Glutamiltransferase (GGT) urinária, dimetilarginina simétrica (SDMA) entre tantos outros.
Com base nestas informações, é possível compreender a importância da atuação do nefrologista em conjunto com o cardiologista no acompanhamento de todo paciente cardiopata, desde os estágios iniciais, pois o mesmo poderá tecer diretrizes para a manutenção da saúde renal pelo maior tempo que lhe for possível, utilizando como base o estadiamento da doença renal crônica (com base na dosagem da creatinina sérica e na dimetilarginina simétrica [SDMA]). Neste estadiamento, o estágio I caracteriza-se por um estado não azotêmico e com SDMA dentro da normalidade. O estágio II pela presença de discreta elevação das concentrações séricas de creatinina e de SDMA. Já no estágio III, a creatinina e a SDMA apresentam-se em moderado grau de elevação, enquanto que no estágio IV há um intenso aumento nas concentrações séricas de ambas (Figura 1). No que diz respeito ao subestadiamento, este é realizado com base na avaliação da pressão arterial sistêmica (Quadro 1) e na perda urinária de proteína (Fluxograma 2).
Ambos, estadiamento e subestadiamento, que seguem as diretrizes estabelecidas pela International Renal Interest Society (IRIS) no ano de 2006 e atualizada em 2019, visam orientar quanto ao manejo clínico do paciente nefropata de acordo com o estágio em que o mesmo se encontra. Dessa forma, há probabilidade maior de aumentar a qualidade e a expectativa de vida destes pacientes cardiorrenais, quando há atuação precoce e conjunta entre o nefrologista e o cardiologista, minimizando os efeitos deletérios da síndrome em ambos os órgãos, uma vez que se conhece o ciclo vicioso de retroalimentação da doença.
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Rosemar de Almeida Freitas
Graduação em Medicina Veterinária pela Universidade
Castelo Branco (2010); Residência em Clínica Médica de Animais de Cia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ, Brasil (2013); Especialização em Urologia e Nefrologia Veterinária, Associação Nacional de Clínico Veterinários de Pequenos Animais – SP, ANCLIVEPA-SP, Brasil (2014) e mestrado em Patologia
e Ciências Clínicas Veterinárias pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ, Brasil (2015).
Doutora em Patologia e Ciências Clínicas Veterinárias pela UFRRJ (2021). Professora de Clínica Médica de Animais de Cia e de Deontologia e Bem estar Animal da Universidade Castelo Branco – UCB. Coordenadora e docente do curso de Pós-graduação (Latu senso) em Urologia e Nefrologia da Universidade Castelo Branco – UCB. Atua nas áreas de de Clínica Médica e Urologia e Nefrologia Veterinária.
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