Por: Adriano de Souza Neto e Andressa Pinheiro
RESUMO
A dermatite atópica canina (DAC) é uma doença inflamatória crônica da pele hereditária comum que envolve anomalias na função da barreira cutânea e inflamação cutânea, infecções secundárias da pele e dos ouvidos por estafilococos e Malassezia e hipersensibilidade a alérgenos ambientais e alimentares. Os cães imitam de perto a complexidade da doença de pele humana, e muito progresso foi feito nos últimos anos em termos da nossa compreensão do papel da deficiência da pele e da identificação de novos tratamentos. Este artigo aborda a importância da dermatite atópica canina na dermatologia veterinária, discute a relação das citocinas com a doença, explora os desafios de diagnóstico enfrentados pelos veterinários e destaca a importância da pesquisa futura na área.
Palavras-chave: alergia, atopia, eczema, prurido, biomarcadores, citocinas, diagnóstico
Introdução
É uma das doenças dermatológicas mais comuns em cães e tem sido objeto de estudo intenso na dermatologia veterinária devido ao seu impacto significativo na qualidade de vida dos animais afetados. A patogênese da dermatite atópica canina ainda não é totalmente elucidada, mas o que se sabe é que há a associação de fatores que levam ao desenvolvimento da doença como a deficiência da barreira cutânea, sensibilização a alérgenos ambientais, alimentares, microbianos e uma resposta imunológica específica. É reconhecido que a dermatite atópica não é uma doença única, mas uma síndrome clínica multifacetada com diferentes vias em vários subgrupos de pacientes.
Diferentes fenótipos (endotipos) de dermatite atópica foram descritos em cães, e é possível que fenótipos relacionados à raça e idade possam existir em outros animais de forma semelhante à forma como são descritos em humanos. A consciência dos diferentes mecanismos da doença leva ao desejo de correlacionar diferentes fenótipos com biomarcadores específicos e respostas ao tratamento, esta complexidade é clinicamente relevante à medida que desenvolvemos tratamentos mais direcionados que podem funcionar bem em alguns pacientes, mas não em outros.
Compreender as causas e os mecanismos subjacentes desta condição é essencial para melhorar o diagnóstico e fatores intrínsecos e extrínsecos envolvidos na síndrome, proporcionando tratamentos mais eficazes e disponibilizando uma melhor qualidade de vida dos pacientes caninos.
Relação das citocinas com a doença
A dermatite atópica canina envolve uma complexa interação entre anomalias da barreira cutânea, hiper-reatividade tegumentar e disbiose microbiana. É uma condição inflamatória hereditária da pele, principalmente desencadeada por uma resposta anormal das células T auxiliares (Th), que inclui as subclasses Th1 e Th2.
Entretanto, nos últimos anos, avanços em estudos utilizando tecnologia de sequenciamento de RNA (RNA-Seq), para caracterizar de forma mais abrangente os perfis do transcriptoma de citocinas em DAC. Curiosamente, os resultados desses estudos revelaram uma regulação positiva do eixo imunológico multipolar (Th1, Th2, Th17 e Th22) na DAC, como é encontrado em humanos com dermatite atópica (DA). Isso indica que a ativação da rede de citocinas na DA não é mais considerada como envolvendo simplesmente um grupo específico de citocinas (isto é, regulação positiva apenas de citocinas Th2) e é, em vez disso, a interação entre um grande número de citocinas. Além disso, um estudo identificou expressão diferencial de microRNAs (pequenos RNAs não codificantes de fita simples que regulam a expressão de outros genes) em cães com DAC, o que indica que os mecanismos imunológicos podem ser ainda mais complexos. No entanto, os estudos em cães ainda são limitados, e tem como alvo apenas citocinas selecionadas. Desta forma, recentes e futuras descobertas sobre o papel de cada citocina e quimiocina na DAC, poderá proporcionar um melhor entendimento na patogenia da síndrome, consequentemente refletindo em pontos alvos importantes no controle da doença.
A resposta Th1 está associada à produção de citocinas pró-inflamatórias, como interferon-gama (IFN-γ) e fator de necrose tumoral alfa (TNF-α). Essas citocinas desencadeiam uma resposta inflamatória que contribui para a lesão da pele e a resposta imune exacerbada. A ativação da resposta Th1 pode resultar em danos à barreira cutânea, tornando-a mais permeável e suscetível a alérgenos. Por outro lado, a resposta Th2 é caracterizada pela produção de citocinas como interleucina4 (IL-4) e interleucina-13 (IL-13). Essas citocinas desempenham um papel fundamental na promoção da resposta alérgica, e na ativação de células envolvidas na inflamação e na produção de imunoglobulina E (IgE). A resposta Th2 está intimamente ligada à sensibilização a alérgenos e à produção de IgE, que desencadeiam uma reação alérgica exagerada quando expostos a substâncias desencadeantes.
Na DAC, ocorre um desequilíbrio entre as respostas Th1 e Th2, com uma predominância da resposta Th2. É importante ressaltar que, na fase crônica da DAC, predominam respostas de linfócitos Th1. Já na fase aguda, predominam respostas de linfócitos Th2, conforme podemos observar na figura 1.
A progressão do processo inflamatório pode levar a uma disbiose microbiana, que é caracterizada por um desequilíbrio na composição e na função da microbiota da pele. Esse desequilíbrio resulta em uma redução da diversidade de espécies bacterianas e em um ambiente propício para a proliferação de certos microrganismos, como o Staphylococcus pseudintermedius. Este é conhecido por desempenhar um papel no agravamento da inflamação e na deterioração da barreira cutânea. Além disso, pode contribuir para a formação de lesões secundárias, como piodermite e infecções bacterianas.
Principais citocinas
Estudos recentes identificaram novos alvos terapêuticos ou potenciais biomarcadores na DAC. Notavelmente, a terapia direcionada à IL-31 tornou-se um dos principais tratamentos. No entanto, resultados inconsistentes na DAC para muitas citocinas demonstram ainda mais a complexidade das redes de citocinas e quimiocinas em diferentes estágios (aguda ou crônica) da inflamação atópica e, talvez, na patogênese de diferentes endotipos de DAC.
As citocinas desempenham um papel fundamental na regulação da resposta imune e inflamatória do organismo. Na dermatite atópica canina, várias citocinas, incluindo interleucina4 (IL-4), interleucina5 (IL-5), interleucina7 (IL-7), interleucina10 (IL-10), interleucina12 (IL-12), interleucina15 (IL-15), interleucina17 (IL-17), interleucina18 (IL-18), interleucina22 (IL-22), interleucina31 (IL-31), interleucina33 (IL-33), interleucina34 (IL-34), interleucina36 (IL-36) e fator de necrose tumoral alfa (TNF-α), estão implicadas na patogênese da doença. Essas citocinas estão relacionadas com uma cascata de eventos inflamatórios e imunológicos que contribuem para a manifestação clínica da dermatite atópica, incluindo prurido, inflamação na pele e alterações na barreira cutânea. Em um compilado de estudos, foi possível observar as concentrações das citocinas em cães com DAC, conforme a tabela 1.
→: Nenhuma diferença significativa (mRNA ou proteína) em comparação com a linha de base, controles com placebo ou controles saudáveis.↓: Regulação negativa (mRNA ou proteína) em comparação com a linha de base, controles com placebo ou controles saudáveis. Abreviaturas: CPEK, queratinócito epidérmico progenitor canino; ICADA, Comitê Internacional sobre Doenças Alérgicas de Animais; PBMC, células mononucleares do sangue periférico
Notavelmente, a terapia direcionada à IL-31, com a injeção de lokivetmab (Cytopoint®), tornou-se um dos principais tratamentos para a dermatite atópica em cães. Esse tratamento reduziu significativamente o prurido atópico e lesões cutâneas dos cães observados nas pesquisas. Porém, as pesquisas ainda não são conclusivas para entendermos exatamente qual o papel de cada citocina e sua correlação na patogênese da dermatite atópica canina. Compreender a interação entre essas citocinas e seus efeitos na pele dos cães é essencial para o desenvolvimento de terapias direcionadas e eficazes.
Desafios de diagnóstico da DAC
O diagnóstico preciso da dermatite atópica canina pode ser desafiador devido à sua natureza multifatorial, e à sobreposição de sintomas com outras condições dermatológicas. Um dos principais desafios é identificar os alérgenos específicos responsáveis pela reação alérgica do cão. Dentre os alérgenos, estão os ácaros domiciliares, fungos anemófilos, pólen advindo de gramíneas, árvores e arbustos e antígenos epidermais.
Sempre é importante considerar e descartar outros diagnósticos diferenciais antes de fazer um diagnóstico clínico de dermatite atópica. O diagnóstico da dermatite atópica é clínico e baseado em história compatível, sinais clínicos e exclusão de outras doenças pruriginosas. Embora ainda dependamos de testes sorológicos e intradérmicos para identificar possíveis alérgenos agressores a incluir na imunoterapia, entende-se que nenhum destes “testes” pode ser utilizado para fins de diagnóstico. Em vez disso, “testes de alergia” devem ser usados após um diagnóstico clínico de dermatite atópica ter sido feito, com a intenção principal de formular imunoterapia específica para alérgenos.
O que o futuro nos reserva?
O futuro da dermatite atópica canina está intrinsecamente ligado à pesquisa contínua na área de dermatologia veterinária. Embora tenham sido feitos avanços significativos no entendimento da doença, ainda há muito a ser descoberto.
Estudos de associação de todo o genoma e investigações sobre biomarcadores genéticos, como microRNAs, forneceram algumas informações novas. Os fatores ambientais parecem desempenhar um papel importante. O estilo de vida, especialmente durante a infância, parece ter um impacto importante no desenvolvimento do sistema imunológico. Fatores como crescer em ambiente rural, família grande, contato com outros animais e dieta à base de carne não processada podem reduzir o risco de desenvolvimento subsequente de DAC. Estudos indicaram que a infecção por Toxocara canis pode ter um efeito protetor contra a DAC induzida por Dermatophagoides farinae. Os ácaros do pó doméstico (D.farinae e D.pteronyssinus) continuam a ser o grupo de alérgenos mais comuns, aos quais os cães atópicos reagem. Atualmente, os principais alérgenos relacionados ao D. farinae em cães incluem Der f 2, Der f 15, Der f 18 e Zen 1.
Tratamentos como o Lokivetmab, um anticorpo monoclonal que tem como alvo a interleucina-31 (IL-31), têm mostrado grande resultado no controle do prurido associado à DAC. Além disso, outros medicamentos que visam inibir outras interleucinas, podem surgir, proporcionando novas opções terapêuticas para controlar a resposta inflamatória na pele dos cães afetados. A identificação de biomarcadores específicos, que podem incluir marcadores genéticos, imunológicos ou bioquímicos, a investigação de novas terapias imunomoduladoras direcionadas ao fenótipo clínico da DAC e o desenvolvimento de abordagens personalizadas de tratamento também são áreas promissoras de pesquisa.
Estudos recentes na DA humana destacaram que o sistema nervoso pode influenciar reciprocamente o prurido e a inflamação da pele. Além de transmitir a percepção da coceira, a excitação dos neurônios sensoriais da pele como mediadores do prurido, levando a uma liberação axonal e antidrômica de neuropeptídeos e neurotransmissores, como o fator de crescimento nervoso (NGF), a substância P (SP) e a periostina na pele. Estes têm sido implicados, em vários graus, na promoção da vasodilatação e na inflamação mediada por leucócitos. Este tipo de inflamação é denominado ‘inflamação neurogênica’, e pode potencializar a DA crônica. Embora este campo seja novo e temos poucas informações para cães, ele pode ter um grande potencial para destacar novas abordagens de tratamento para DAC.
CONCLUSÃO
A dermatite atópica canina continua sendo um desafio para veterinários e pesquisadores, mas também representa uma oportunidade para avanços significativos na dermatologia veterinária. Se mostra complexa e geneticamente heterogênea que é influenciada por múltiplos fatores ambientais. Estudos mais abrangentes e estruturados (por exemplo, em estágios específicos da doença e/ou endotipos específicos de DA definidos) são necessários para compreender melhor as redes precisas de citocinas e quimiocinas na DAC.
Compreender estes mecanismos imunológicos e inflamatórios subjacentes à doença, aprimorar técnicas de diagnóstico e desenvolver novas estratégias terapêuticas são cruciais para melhorar o manejo clínico e o prognóstico dos pacientes caninos afetados. Investir em pesquisa e colaboração interdisciplinar é essencial para enfrentar os desafios futuros e proporcionar melhores cuidados aos cães com dermatite atópica.
REFERÊNCIAS
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Adriano de Souza Neto
Médico-veterinário formado pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC);
Pós-graduação em clínica médica de cães e gatos pela Universidade Castelo Branco (UCB);
Pós-graduação em dermatologia veterinária pela Universidade Castelo Branco (UCB);
Mestrado em ciência animal, com ênfase em dermatologia veterinária (PUC-PR);
Professor de Clínica médica de pequenos animais da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL);
Professor convidado da Dermatovet cursos;
Sócio proprietário da clínica veterinária Vet Village e hospital veterinário Vet Ilha em Florianópolis-SC.
Andressa Pinheiro
Graduada em Jornalismo pela Universidade Estácio de Sá;
Pós-graduada em Marketing Digital pela Faculdade Senac;
Graduanda do curso de Medicina Veterinária na Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), em Florianópolis-SC.