“Cada paciente é um desafio”, diz Dra. Cibele Carvalho, pioneira em ultrassonografia em pequenos animais

MÉDICA-VETERINÁRIA FOI UMA DAS PRIMEIRAS A TRABALHAR COM ULTRASSONOGRAFIA EM PEQUENOS ANIMAIS E HOJE, É DIRETORA EXECUTIVA E CIENTÍFICA DO NAUS

Foto: Arquivo Pessoal/ Dra. Cibele Carvalho: “procure se conhecer bem, goste do que você faz e façac om amor”

Por: Samia Malas

Graduada em medicina veterinária pela Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo (FMVZ – USP) desde 1989, com mestrado em clínica veterinária pela mesma instituição, e doutorado em Radiologia (2009) e pós-doutorado em ultrassonografia com contraste por microbolhas e elastografia (2014), ambos pelo Instituto de Radiologia da FMVZ – USP, Dra. Cibele Carvalho é referência na área de Ultrassonografia em pequenos animais.
Autora dos livros de Ultrassonografia em Pequenos Animais e Ultrassonografia Doppler em Pequenos Animais, a veterinária também é diretora executiva e científica do Núcleo de Aperfeiçoamento em Ultrassonografia (NAUS). A seguir, confira bate-papo que tivemos com ela.

Revista Med Vet em foco: Há quanto tempo está na área de imagem? Quais dificuldades encontrou no início da sua carreira, até pelo pioneirismo que teve na atuação na área de imagem?
Dra. Cibele Carvalho: São 35 anos trabalhando com exames de imagem. Interessei-me pela área desde o último ano de faculdade, onde iniciei monitoria, tive bolsas de estudo científico pela FAPESP e acabei fazendo iniciação científica na área de radiologia, pois no final da década de 1980 não havia ultrassonografia na veterinária de pequenos animais em nenhum lugar no mundo. Eu não sabia exatamente o que ia fazer, pois não tinha mercado de trabalho para um veterinário especialista, era outra realidade. Quando estava me formando, um tio meu me falou sobre a ultrassonografia na medicina humana. Ele era médico e me aconselhou a investir nesta área para pequenos animais. Então, fui aprender ultrassonografia em humanos no Instituto de Radiologia da USP, e foi através deste contato que consegui ganhar um equipamento de ultrassom usado, por doação, para a faculdade de Medicina Veterinária da USP. E foi assim que nasceu o sonho de ter uma carreira acadêmica na área. Como eu já pensava em trabalhar com pesquisa e ser professora, esta doação do equipamento avançou ainda mais esta minha expectativa. Isso foi o start para se instalar o projeto daquilo que é hoje em dia o setor de Diagnóstico por imagem da USP. O início de minha carreira foi um pouco difícil, pois tinha que aprender tudo que havia na medicina humana. Então, não aprendi só a formação da imagem, mas as técnicas de varredura, como olhar as doenças e o que era normal na espécie humana. Então, o desafio era transpor isso para a medicina veterinária. Tive que voltar para as bases com livros de anatomia, fisiologia, citologia e histopatologia, para poder fazer o que hoje chamamos de medicina translacional. Trabalhei durante quase 5 anos na USP, instalei o serviço de ultrassonografia por lá, iniciei o meu mestrado com isso, criando os padrões de referência do que seria normal na espécie canina para fígado, baço, vesícula biliar e rins, e defendi meu mestrado em 1995. Depois disso, fiz um dos primeiros serviços de ultrassonografia volante em São Paulo. Já havia duas pessoas que faziam isso e me aventurei a fazer. Foi um trabalho de formiguinha ensinar os clínicos veterinários da época quando deviam pedir o exame, para que servia e como interpretar os resultados. Então, esse início de minha atuação foi bem difícil, literalmente estava “abrindo a trilha com um facão na frente” desta área. Não fiquei como volante por muito tempo, pois a demanda cresceu demais.
Em 1996, abri um Centro de Diagnóstico com um sócio (o Vet Imagem). Na época só existia o Provet no estado de São Paulo. Em 1997, continuei a carreira acadêmica que sempre foi uma paixão, e comecei a dar aula em faculdade particular. Dei aula para a graduação sobre diagnóstico por imagem até 2014. Foram quase 20 anos dando aula. A partir daí fiz muitas outras coisas: pesquisas, doutorado, pós-doutorado, lancei dois livros. Até 2015 minha carreira foi focada na área acadêmica e fazendo também o serviço de ultrassonografia. Em 2001, quando meu primeiro filho nasceu, deixei de ser empresária, e voltei a ter um Centro de Diagnóstico apenas 15 anos depois, quando abri o NAUS.

Quais requisitos e/ou habilidades acredita ser importante para atuar na área?
Dra. Cibele: A pessoa precisa gostar muito de estudar, pois os equipamentos dependem muito de tecnologia, e ela avança de maneira muito rápida, e os conceitos mudam muito rapidamente. A pessoa também precisa ter um conhecimento muito bom das disciplinas de base como anatomia, fisiologia, patologia, e de clínica médica, pois fazemos a ponte entre o clínico e a tecnologia. Então, precisamos saber muito como descrever os achados que os equipamentos nos mostram em uma linguagem médica e técnica para os clínicos. Outra habilidade que precisa ter é o raciocínio espacial. Dizem que é uma habilidade de matemática, de geometria, pois precisa saber interpretar as imagens em modo B, que são basicamente bidimensionais, mas são cortes seccionais, que se transformam em uma estrutura tridimensional que é a estrutura dos órgãos, mas sem a reconstrução do computador. Então precisa ter um raciocínio espacial para poder compreender estas imagens e entender de forma tridimensional o que está acontecendo.

RMVF: Quais os desafios na rotina?
Dra. Cibele: Cada paciente é um desafio. O desafio de ver a mesma doença que já viu mil vezes, mas com outra cara naquele paciente. Sintomatologias e gravidade diferentes na mesma doença. Nem sempre as imagens que a gente adquire de uma doença serão iguais em todos os pacientes. Outro desafio é ter um lado técnico muito afiado e desenvolver o lado médico, que é aquele que faz a tradução dos achados para o clínico que solicitou o exame. Sem contar que precisamos saber lidar com o tutor que está ansioso e quer saber, ao final do exame, como está o pet dele. Então, lidar com estas sutilezas humanas também é importante, apesar da nossa interação com o tutor ser bem mais rápida do que a do clínico.

RMVF: Quais serviços/equipamentos estão em alta na área atualmente?
Dra. Cibele: Tenho notado uma mudança no mercado há alguns anos, principalmente nos últimos 5 anos. Ele tem se mostrado mais agressivo, pois as pessoas estão procurando mais os serviços de diagnóstico complementar. A medicina veterinária também está evoluindo, fazendo com que esta área evolua junto com ela. Então, os serviços que estão em alta são os mais especializados e os equipamentos também. Uma vez que você precisa de equipamentos com mais tecnologia para executar um exame com maior qualidade. Os equipamentos de ponta são os mais procurados e utilizados.

RMVF: Poderia narrar algum caso complexo que tenha enfrentado no consultório que gostaria de compartilhar?
Dra. Cibele: Depois de 35 anos de trabalho, difícil separar um caso só. Mas casos que me dão um feedback bom, muitas vezes, nem envolvem tanto tecnologia, mais a qualidade do equipamento e o bom treinamento do olho do ultrassonografista. Mas posso citar um caso de uma Schnauzer, que é de uma colega veterinária, que fez diversos exames ultrassonográficos e ninguém sabia o que ela tinha. Ela estava definhando e veio me ver poucos dias antes da tomada de decisão de eutanásia porque ela estava muito mal. Quando eu fiz o exame de ultrassom total nela, a gente encontrou um corpo estranho. Depois disso ela fez cirurgia e ficou bem. Um caso que razoavelmente é simples, mas às vezes, as coisas mais simples podem passar pela vista. Então, acho que uma das coisas que precisamos pensar é que a ultrassonografia tem uma parte técnica, mas se não ficar atento aos sinais, aos detalhes, à qualidade da imagem, ao histórico do paciente e aos outros exames que acompanham o paciente, podemos errar nas coisas mais simples. Poderia citar uma série de outros casos que o feedback foi maravilhoso, de pessoas que vêm com o pet com suspeita de tumor no fígado e quando fazemos o exame com contraste de microbolhas, conseguimos dar uma notícia feliz para esta pessoa. Isso me alimenta a alma, é muito bom.

RMVF: Que conselhos dá aos veterinários que estão buscando se especializar na área?
Dra. Cibele: Aconselho estudar muito, pensar muito se é realmente o que você quer, pois o desafio de estar sempre se atualizando é grande. Não pense que você vai comprar uma máquina boa hoje e ela vai te servir o resto da vida. Faça primeiro um curso do mais simples, para ver se é isso mesmo que quer, se encaixa-se no perfil de memória visual, raciocínio espacial e de raciocínio clínico. Não só nesta área, em qualquer uma, se conheça antes de optar. O autoconhecimento, saber se você quer, se gosta e se você se vê fazendo aquilo por muito tempo, isso é fundamental para saber se aquele é o seu lugar.

RMVF: Gostaria de  acrescentar algum comentário para encerrar a entrevista?
Dra. Cibele: Independentemente de qual área a gente escolha para trabalhar na vida devemos gostar muito do que fazemos. Porque o trabalho é difícil, o investimento é alto, a educação é continuada, os desafios são diários, mas se fizermos isso tudo só esperando um retorno material talvez fique frustrado. Não que não haja, acho que todo esforço tem um retorno. Procure se conhecer bem, goste do que você faz e faça seu trabalho com amor.