PRINCIPAIS DESORDENS URINÁRIAS DE FELINOS

Por: Lilian Stefanoni Ferreira Blumer, Thaynara S. S. Sá, Larissa L.Greve e Giovana Galerani

PRINCIPAIS DESORDENS URINÁRIAS DE FELINOS

NTRODUÇÃO

A Medicina Felina vem conquistando uma ampla esfera dentro da Medicina Veterinária. O conhecimento sobre as principais enfermidades do trato urinário de felinos e suas particularidades torna-se imprescindível para o clínico como forma de chegar a um diagnóstico e protocolo terapêutico adequados.

Existem muitas condições que podem afetar os sistemas urológico inferior e superior dos gatos. Nesse artigo serão abordadas as principais afecções do sistema urinário dos gatos.

{PAYWALL_INICIO}

CISTITE INTERSTICIAL FELINA

A cistite intersticial felina (CIF) não possui sua fisiopatologia completamente elucidada. Acredita-se que pacientes susceptíveis em situações estressantes desencadeiam uma série de respostas inflamatórias mediadas pelas ativações dos sistemas nervoso e endócrino, levando a alterações não apenas em trato urinário inferior como também sistêmica (FORRESTER; TOWELL, 2015; LITTLE, 2015; RECHE JUNIOR; CAMOZZI, 2015). Seu diagnóstico é realizado através da exclusão de todas as possíveis DTUIF (LITTLE, 2015; WESTROPP, 2011)

O manejo da CIF costuma englobar principalmente o enriquecimento ambiental e a terapia multimodal (MEMO), associada ao uso de analgésicos, anti-inflamatórios, antiespasmódicos, reposição de glicosaminoglicanos, feromônio facial e acupuntura, sendo necessário ainda, em determinados casos, o uso de antidepressivos (WESTROPP, 2011).

A MEMO é baseada no enriquecimento alimentar e hídrico, com a utilização de brinquedos intuitivos que estimulem a sensação de predação e captura e estimulem a ingestão de água (WESTROPP; DELGADO; BUFFINGTON, 2019, ALHO, 2012), e tem como regra principal o manejo N+1, onde deve-se dispor a quantidade de comedouros, bebedouros e liteiras de acordo com o número de animais presentes no ambiente, adicionando-se 1 objeto a mais de cada item. (WESTROPP; DELGADO; BUFFINGTON, 2019). A adoção de medidas que diminuam os potenciais estressores é o fator determinante para o sucesso da terapia (WESTROPP, 2011).

OBSTRUÇÃO URETRAL

A obstrução uretral ocorre geralmente em machos, devido ao seu diâmetro uretral menor (BARTGES, 2011), sendo o plug e os urólitos as causas mais comuns (WESTROPP, 2011). Composto por material muco-proteico, o plug se forma a partir do processo inflamatório do trato urinário inferior, impedindo a saída do fluxo urinário (WAKI; KOGIKA, 2015). Já os urólitos, ocorrem devido à precipitação de metabólitos na urina. Diferentes fatores podem predispor à sua formação, desde raça, genética e sexo até manejo alimentar incorreto e ambiente estressante. Os urólitos mais comumente encontrados são os de estruvita, passíveis de dissolução através da dieta, e os urólitos de oxalato de cálcio, não são passíveis de dissolução requerendo intervenções mais invasivas (WESTROPP; LULICH, 2017, LITTLE, 2016). Sinais clínicos como disúria, hematúria, vocalização na caixa de areia e lambedura do pênis ou prepúcio, podendo haver letargia, anorexia, fraqueza e vômitos são frequentes (BARTGES, 2011; LITTLE, 2015).

O manejo da obstrução uretral inclui estabilização do paciente, sedação, analgesia e relaxamento uretral associado à cistocentese descompressiva, sondagem uretral e fluidoterapia para correção dos distúrbios hidroeletrolíticos a fim de evitar uma possível lesão renal (BARTGES, 2011; LITTLE, 2015), sendo importante investigar sua causa de base, de modo a evitar eventuais recidivas (LULICH et al., 2016).

OBSTRUÇÃO URETERAL

Dentre as principais causas das obstruções ureterais felinas estão os ureterólitos e as estenoses (DUNN; BERRENT, 2017). Os ureterólitos, mais comumente encontrados são os de oxalato de cálcio, não passiveis de dissolução (KYLES et al., 2005).

A obstrução da pelve e/ou do ureter leva ao aumento da pressão dentro da Cápsula de Bowman e dos túbulos renais, com subsequente lesão dos néfrons e azotemia pós renal, resultando em lesão renal aguda. As alterações mais comumente encontradas são a azotemia, hiperfosfatemia e hipercalemia. (SEGEV, 2011). Os sinais clínicos são inespecíficos e vagos, como a letargia, diminuição do apetite, perda de peso, vômito, dor abdominal e oligúria (ADAMS, 2018; SEGEV, 2011).

O diagnóstico por imagem é essencial. Radiografias apresentam certa limitação para cálculos muito pequenos ou não radiopacos, enquanto a ultrassonografia possui uma maior sensibilidade e é capaz de fornecer uma avaliação mais detalhada do trato urinário (SEGEV, 2011).

O tratamento médico baseia-se em fluidoterapia para correção da desidratação e reestabelecimento hidroeletrolítico; utilização de diuréticos para aumentar o volume urinário e “empurrar” os ureterólitos e no relaxamento e analgesia ureteral; (DUNN; BERRENT, 2017).

O protocolo conservativo não é efetivo em todos os casos, sendo que animais apresentando sinais de comprometimento renal devem ser submetidos ao tratamento cirúrgico: ureterostomia para retirada dos cálculos e implantação de dispositivo de by-pass ureteral subcutâneo SUB (DUNN; BERRENT, 2017).

DOENÇA RENAL CRÔNICA

As causas de DRC em felinos podem variar desde nefrite tubulointersticial crônica e hidronefrose secundária a ureteronefrólitos, à amiloidose e doenças infecciosas como a PIF – peritonite infecciosa felina (SCHERK, 2015). Polidipsia, poliuria, desidratação, apetite seletivo, náuseas, êmese, emagrecimento, perda muscular, escore corporal reduzido, hipertensão sistêmica, apatia e prostração, halitose e estomatite urêmica estão entre os sinais mais comuns de pacientes com DRC (POLZIN, 2011, POLZIN, 2013), além de pelame eriçado e sem brilho e mucosas pálidas (SCHERK, 2015).

O diagnóstico de DRC é baseado na evidência de alterações morfológicas ou por alterações especificas da função renal, como proteinúria persistente de origem glomerular ou tubular, ou glicosúria, por exemplo (POLZIN, 2013).

Figura 2 – Estadiamento da doença renal crônica em felinos Adaptado de: IRIS, 2019a.
Figura 3 – subestadiamento da doença renal crônica em felinos com base nos valores da relação proteína/creatinina urinária. Adaptado de: IRIS, 2019a.
Figura 4 – subestadiamento da doença renal crônica em felinos com base nos valores de pressão arterial sistêmica. Adaptado de: IRIS, 2019a.

O estadiamento da DRC é realizado com base nos critérios estabelecidos pela sociedade de interesse renal (IRIS), sendo utilizadas as mensurações de creatinina e SDMA, e para o subestadiamento, a relação proteína/creatinina urinária (RPC) associada aos valores de pressão arterial sistólica (PAS) (Figuras 2, 3 e 4) (IRIS, 2019a). Tal estadiamento só deve ser realizado em pacientes estáveis (POLZIN, 2013).

Os objetivos da terapia renal visam diminuir a perda progressiva da função renal e melhorar o quadro clínico geral, oferecendo uma melhor qualidade de vida. O tratamento da DRC é feito com dieta, controle do balanço hidroeletrolítico, da pressão arterial, da proteinúria e correção de deficiências hormonais.

A monitoração frequente e o manejo adequado são pontos insubstituíveis para a qualidade de vida, bem como sua longevidade (POLZIN, 2013).

DISCUSSÃO

O baixo consumo de água por gatos, associado a dietas predominantemente secas, pode estar relacionado ao desenvolvimento e à progressão de diferentes enfermidades do trato urinário, como é o caso da CIF, das urolitíases e DRC. Por tais razões, o estímulo de ingestão hídrica é de grande importância (LITTLE, 2015; POLZIN, 2017; WESTROPP, 2011).

O manejo de pacientes com doenças do trato urinário muitas vezes requer um alinhamento e parceria continua entre tutor e veterinário, com o objetivo de se otimizar o resultado a longo prazo e a obtenção de sucesso terapêutico (LITTLE, 2015; POLZIN, 2017).

REFERÊNCIAS

ACIERNO, M. J. et al. ACVIM consensus statement: Guidelines for the identification, evaluation, and management of systemic hypertension in dogs and cats. Journal of veterinary internal medicine, v. 32, n. 6, p. 1803-1822, Oct. 2018.Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/jvim.15331 >. Acesso em: 06 jun. 2021.

ALHO, A. M. P. V. A. O enriquecimento ambiental como estratégia de tratamento e prevenção da cistite idiopática felina. 2012. Tese de Doutorado. Universidade Técnica de Lisboa. Faculdade de Medicina Veterinária. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10400.5/4064/>. Acesso em: 08 jun. 2021.

BARTGES, J. Urethral Diseases. In: BARTGES, J.; POLZIN, D. Nephrology and urology of small animals. 1ª ed. John Wiley & Sons, 2011. p. 778-786.

DUNN, M. E.; BERRENT, A. C. Urologic Interventional Therapies. In: In: ETTINGER, S. J.; FELDMAN, E. C.; COTE, E. Textbook of Veterinary Internal Medicine. 8th ed. Elsevier health sciences, 2017. p. 1352-1400.

FORRESTER, S. D.; TOWELL, T. L. Feline idiopathic cystitis. Veterinary Clinics: Small Animal Practice, v. 45, n. 4, p. 783-806, 2015.  Disponível em: < https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25813400/>. Acesso em: 08 jun. 2021.

IRIS Guidelines. Staging of CKD based on blood creatinine and SDMA concentrations, 2019a. Disponível em: <http://www.iris-kidney.com/pdf/IRIS_Staging_of_CKD_modified_2019.pdf/>. Acesso em: 02 maio, 2021.

IRIS Treatment Recommendations for CKD in Cats, 2019b. Disponível em: <http://www.iris-kidney.com/pdf/IRIS-DOGTreatment_Recommendations_2019.pdf/>. Acesso em: 02 maio, 2021.

JUNIOR, A. R.; CAMOZZI, R. B. Doença do Trato Urinário Inferior dos Felinos | Cistite Intersticial. In: JERICÓ, M. M.; NETO, J. P. A.; K, M. M. Tratado de medicina interna de cães e gatos. 1. ed. Rio de Janeiro: Roca, 2015. v. 2. p.1483-1492.

LITTLE, S. Distúrbios do Trato Urinário Inferior. In: LITTLE, S. O gato. Grupo Gen-Editora Roca Ltda., 2015. p, 1406-1451.

LULICH, J. P. et al. ACVIM small animal consensus recommendations on the treatment and prevention of uroliths in dogs and cats. Journal of veterinary internal medicine, v. 30, n. 5, p. 1564-1574, 2016. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/jvim.14559/>. Acesso em: 15 jul. 2021.

POLZIN, D. J. Chronic Kideny Disease. In: BARTGES, J.; POLZIN, D. Nephrology and urology of small animals. 1ª ed. John Wiley & Sons, 2011. p. 433-471.

POLZIN, D. J. Evidence‐based step‐wise approach to managing chronic kidney disease in dogs and cats. Journal of veterinary emergency and critical care, v. 23, n. 2, p. 205-215, 2013. Disponível em: < https://doi.org/10.1111/vec.12034 />. Acesso em: 05 maio, 2021.

POLZIN, D. J. Chronic Kidney Disease. In: ETTINGER, S. J.; FELDMAN, E. C.; COTE, E. Textbook of Veterinary Internal Medicine. 8thed. Elsevier health sciences, 2017. p.4693-4728.

SEGEV, G. Diseases of the Ureter. In: BARTGES, J.; POLZIN, D. Nephrology and urology of small animals. 1ª ed. John Wiley & Sons, 2011. p. 583-590.

SCHERK, M. Distúrbios do Trato Urinário Superior. In: LITTLE, S. O gato. Grupo Gen-Editora Roca Ltda., 2015. p. 1342-1405.

WAKI, M. F; KOGIKA, M. M. Urolitíase em Cães e Gatos. In: JERICÓ, M. M.; NETO, J. P. A.; K, M. M. Tratado de medicina interna de cães e gatos. 1. ed. Rio de Janeiro: Roca, 2015. v. 2. p.1394-1409.

WESTROPP, J. L.; LULICH, J. Medical management of urolithiasis. In: BSAVA manual of canine and feline nephrology and urology. BSAVA Library, 2017. p. 304-310.

WESTROPP, J. L. Feline Idiopathic Cystitis. In: BARTGES, J.; POLZIN, D. Nephrology and urology of small animals. 1ª ed. John Wiley & Sons, 2011. p. 745-754.

WESTROPP, J. L.; DELGADO, M.; BUFFINGTON, C. T. Chronic lower urinary tract signs in cats: current understanding of pathophysiology and management. Veterinary Clinics: Small Animal Practice, v. 49, n. 2, p. 187-209, 2019. Disponível em: < https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30736893//>. Acesso em: 30 jun. 2021.

Lilian Stefanoni Ferreira Blumer

Graduação em Medicina Veterinária pela Unesp – Campus Araçatuba
Residência em Clínica Médica de Pequenos Animais pela Unesp – Campus de Jaboticabal
Mestrado em Medicina Veterinária com ênfase em Nefrologia e Urologia de cães e gatos pela Unesp – Campus de Jaboticabal
Membro do Colégio Brasileiro de Nefrologia e Urologia Veterinárias – CBNUV
Professora de graduação e pós-graduação em Faculdades de Medicina Veterinária
Atendimento em Nefrologia de cães e gatos.

Thaynara Suellen Souza Sá

Graduada em Medicina Veterinaria pela Universidade Paulista – Campus de Campinas 2015-2019. Residente em Clínica Médica de Pequenos animais pela PUC Campinas 2020-atualmente.

Larissa Ligero Greve

Graduação em Comunicação Social- Jornalismo, pela UNIFRAN – Universidade de França e Graduanda do 10° semestre em Medicina Veterinária, pela UNIP – Universidade Paulista – Campus Campinas.

Giovana Galerani

Graduanda do 10º semestre de Medicina Veterinária pela UNIP – Universidade Paulista – Campinas. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq pela USP – Universidade de São Paulo.
Estagiária na Clínica Cat & Dog e outros bichos desde 2020.

{PAYWALL_FIM}